O idioma secreto dos ladrões da Idade Média: Gírias esquecidas da criminalidade europeia

I. Introdução – Quando o crime falava outra língua

Imagine caminhar por uma feira medieval, cercado por mercadores, viajantes e artistas de rua. Em meio à multidão, um grupo de figuras à margem da sociedade — andarilhos, vigaristas, batedores de carteira — troca olhares e palavras que, aos ouvidos comuns, soam como mero balbucio ou delírio. Mas, para quem entende, aquele idioma diz tudo: quem tem o dinheiro, qual é o alvo, onde será a fuga. Esse era o universo das línguas secretas da criminalidade europeia.

Muito antes de existirem códigos binários ou criptografia digital, ladrões e marginais da Idade Média já utilizavam suas próprias formas de comunicação cifrada. Conhecidas como Thieves’ Cant na Inglaterra, Rotwelsch na Alemanha e Argot na França, essas gírias eram mais do que simples jargões: eram ferramentas de sobrevivência, camadas de identidade e, acima de tudo, estratégias para escapar do olhar atento da lei.

Esses dialetos, misturas vivas de idiomas locais com traços do romani, do hebraico e de línguas extintas, funcionavam como escudos linguísticos. Permitiam que os que viviam nas sombras compartilhassem informações vitais sem que nobres, soldados ou padres entendessem uma única palavra. Eram códigos de um submundo que se movia dentro — mas também fora — da ordem medieval.

Neste artigo, vamos mergulhar nessas linguagens esquecidas: quem as falava, o que significavam e por que ainda hoje fascinam linguistas, historiadores e curiosos. Mais do que palavras de ladrão, essas línguas revelam uma forma engenhosa e invisível de resistir ao poder — com a ponta da língua.

II – De Cant a Rotwelsch: os dialetos da marginalidade

Enquanto os reis ditavam as leis e os monges copiavam as palavras sagradas nos mosteiros, uma outra forma de linguagem florescia nos becos, tavernas e estradas poeirentas da Europa medieval: os dialetos da marginalidade. Essas línguas subterrâneas, criadas por ladrões, andarilhos, prostitutas e nômades, formavam uma espécie de mapa sonoro da exclusão social. Elas não existiam em livros — sobreviviam na oralidade, passadas de boca em boca, de geração em geração.

Cant: a gíria codificada dos ladrões ingleses

Na Inglaterra do século XVI, surgiu o que ficou conhecido como Thieves’ Cant, uma mistura de inglês arcaico, gaélico irlandês e palavras criadas exclusivamente para despistar autoridades. Termos como “prig” (ladrão), “nabb” (roubar), e “cove” (homem) permitiam que criminosos falassem abertamente entre si sem se denunciarem. Essa linguagem era tão difundida que chegou a preocupar o governo, levando à publicação de dicionários para decifrar seus termos — como o famoso “The Canting Academy”, de 1673.

Rotwelsch: um idioma mutante nas estradas da Alemanha

Na região central da Europa, especialmente nos territórios germânicos, desenvolveu-se o Rotwelsch — uma mistura flexível e altamente adaptável de alemão, iídiche, romani, latim e hebraico. Era falado por uma vasta rede de pessoas “em trânsito”: viajantes, ex-soldados, mendigos e criminosos. O Rotwelsch tinha duplo propósito: esconder a informação e reforçar um senso de identidade entre os que viviam fora da ordem tradicional. Embora considerado um “dialeto de ladrões”, sua complexidade atraiu até o interesse de linguistas e escritores como Victor Klemperer e Elias Canetti.

Argot: a linguagem dos becos franceses

Na França, Argot nasceu entre os chamados coquillards, uma fraternidade de criminosos ativos no fim da Idade Média. Ao longo dos séculos, o argot se misturou ao francês comum, influenciando o vocabulário informal até os dias atuais. Mais do que um código secreto, o argot francês refletia uma cultura de rua com suas próprias normas, valores e estética linguística — uma verdadeira contracultura dentro da língua oficial.

Esses dialetos não eram apenas ferramentas utilitárias — eram manifestações de resistência, de cultura marginal e de engenhosidade coletiva. Eles mostravam que, mesmo sob vigilância e repressão, sempre haveria espaço para a invenção de mundos paralelos — linguísticos, simbólicos e sociais.

III – O que diziam essas gírias? Um glossário do submundo

Os dialetos secretos da criminalidade medieval não eram apenas um disfarce — eles revelavam toda uma visão de mundo. Suas palavras funcionavam como senhas, códigos morais alternativos e espelhos invertidos da sociedade. Muitos desses termos soavam absurdos aos ouvidos da elite, mas tinham significado profundo para quem os usava.

A seguir, um mergulho em algumas das expressões mais curiosas e reveladoras desses idiomas ocultos:

Thieves’ Cant (Inglaterra)

  • Prig – ladrão ou batedor de carteiras.
  • Nab the swag – roubar a mercadoria.
  • Cove – homem (qualquer indivíduo).
  • Doxy – amante ou cúmplice feminina.
  • Cramp ring – algema.
  • Rum booze – bebida de qualidade duvidosa.

Essas palavras permitiam conversas inteiras que, para um ouvido externo, pareciam apenas gírias ou nonsense. Um grupo podia planejar um roubo diante de autoridades — e estas nada entenderiam.

Rotwelsch (territórios germânicos)

  • Schachern – negociar de forma desonesta.
  • Ganove – bandido, golpista (hoje parte do alemão coloquial).
  • Hehler – receptador de bens roubados.
  • Streuner – vagabundo, andarilho.
  • Blinde Kuh – “vaca cega”, usado para indicar um policial desavisado.

Muitas dessas palavras foram assimiladas ao alemão popular — uma infiltração silenciosa do submundo no vocabulário oficial.

Argot (França)

  • Grinche – ladrão de residências.
  • Piaule – esconderijo, quarto alugado.
  • Fric-frac – arrombamento.
  • Biscotte – dinheiro.
  • Gniard – criança (usado para referir-se a aprendizes do crime).

O argot evoluiu ao longo dos séculos, e parte dele ainda sobrevive em formas modernas do francês informal, como o verlan.

Essas palavras não apenas permitiam comunicação sigilosa — eram ferramentas de sobrevivência. Usá-las corretamente podia significar escapar da prisão, garantir abrigo ou reconhecer aliados em meio ao caos social. Hoje, funcionam como vestígios linguísticos de comunidades paralelas que ousaram viver à margem.

IV – Uma linguagem de exclusão ou de resistência?

Quando examinamos o idioma secreto dos ladrões da Idade Média, não estamos apenas estudando gírias obscuras — estamos tocando em um sistema linguístico forjado nas margens. E isso nos leva a uma questão central: essas línguas ocultas eram apenas códigos para enganar e excluir ou formas legítimas de resistência social?

Linguagem como escudo

Na maior parte da Europa medieval e moderna, pessoas que viviam à margem — vagabundos, andarilhos, ladrões, ciganos, mendigos — eram perseguidas, invisibilizadas e forçadas à errância. A linguagem secreta se tornou um mecanismo de autoproteção. Ao criar códigos que só circulavam entre iguais, esses grupos protegiam informações essenciais: rotas seguras, aliados, esconderijos, planos.

Essas línguas, como o Thieves’ Cant ou o Rotwelsch, funcionavam como abrigo simbólico. Elas criavam uma comunidade onde não havia cidadania — um lugar de pertencimento linguístico dentro de uma sociedade hostil.

Excluir ou resistir?

A visão tradicional os define como “idiomas de criminosos”, sugerindo engano, falsidade e trapaça. Mas há uma leitura mais ampla e crítica: essas linguagens expressavam uma rejeição ao sistema vigente, ao mesmo tempo em que permitiam navegar dentro dele com astúcia. Eram, em certo sentido, uma forma de subversão silenciosa — uma resistência oral ao poder instituído.

O poder de nomear

Nomear é poder. E ao nomear o mundo com suas próprias palavras, esses grupos reinventavam a realidade. O que era prisão virava “casa de ferro”; o dinheiro, “pão quente”; o policial, “corvo”. Rebatizar era reverter o olhar opressor.

Essas linguagens também punham em xeque a própria ideia de autoridade: se o mundo dos nobres e clérigos tinha seu latim, os marginalizados criavam seus próprios idiomas para dizer: nós também sabemos, também falamos — e vocês não nos entendem.

Hoje, ao redescobrir essas línguas, somos levados a perguntar: quantas vozes foram silenciadas não por falta de palavras, mas por terem criado palavras demais fora do padrão?

V – Por que essas línguas sumiram (e por que devemos resgatá-las)?

As línguas secretas dos ladrões, andarilhos e excluídos da Idade Média — como o Cant inglês ou o Rotwelsch alemão — não desapareceram por acaso. Elas foram silenciadas pouco a pouco, tanto pela evolução social quanto por repressões diretas. Mas talvez o mais importante seja entender por que devemos lembrar delas hoje.

O apagamento deliberado

Ao longo dos séculos, governos, forças policiais e até estudiosos trataram essas línguas como ameaças. Por isso, documentos oficiais tentavam desmascarar, decodificar e extinguir esses dialetos. Em muitos casos, pessoas que usavam tais vocabulários eram presas ou vigiadas com mais rigor simplesmente por se comunicarem em “língua de ladrão”.

Além disso, a alfabetização em massa e a unificação linguística promovida pelos Estados modernos substituíram gradualmente essas gírias locais por idiomas oficiais. O que era resistência oral passou a ser visto como “erro”, “barbárie” ou “fala do crime” — e foi lentamente apagado do cotidiano.

Uma memória linguística marginal

Resgatar esses idiomas não significa romantizar o crime, mas ouvir os ecos de uma sociedade paralela, onde quem não tinha voz criou uma para si. Há beleza e inventividade nesses vocabulários, formas criativas de nomear o mundo com humor, sarcasmo e crítica social.

Estudar esses idiomas é também recuperar um pedaço da história que não foi escrito pelos vencedores, mas sussurrado entre vielas, mercados e prisões. É um convite a ampliar nossa noção de cultura e linguagem, reconhecendo que até nas sombras surgem formas legítimas de expressão.

Por que lembrar agora?

Em tempos de vigilância digital, exclusão social e novas formas de marginalização, as línguas esquecidas da criminalidade medieval nos lembram que linguagem também é território, refúgio e ferramenta de resistência. Elas podem nos inspirar a ouvir com mais atenção os códigos sociais de hoje — e a respeitar as vozes que falam fora do dicionário oficial.

VI – Conclusão: Quando até o crime vira poesia linguística

Nas margens da história, onde os livros oficiais raramente pousam os olhos, uma rede de palavras floresceu nas sombras. Cant, Rotwelsch, Thieves’ Latin — todos esses idiomas subterrâneos mostram que até no submundo há poesia, mesmo que nascida da necessidade.

Essas línguas não eram apenas códigos para enganar autoridades ou esconder segredos entre comparsas. Elas eram expressões legítimas de comunidades invisibilizadas, modos de dar forma ao mundo quando o mundo recusava ouvi-las. Criar gírias era, ao mesmo tempo, sobrevivência e invenção.

Hoje, revisitá-las é mais do que curiosidade histórica. É reconhecer que a linguagem é viva, plural, insurgente. Que nem todo vocabulário nasce nos bancos escolares ou em salões acadêmicos. Que, por vezes, a beleza da linguagem está justamente na rebeldia que ela carrega.

E se até o crime, em seu contexto de marginalidade, criou estruturas linguísticas tão complexas e engenhosas, talvez devêssemos repensar o que chamamos de cultura, legitimidade e expressão. Porque, no fim, até na fala de um fora-da-lei pode haver poesia — e ela pode nos contar muito sobre quem realmente somos.